sexta-feira, 25 de setembro de 2009

"a morte de paula d." - Brisa Paim


A VÍTIMA DO COTIDIANO


TÍTULO: a morte de paula d.

AUTORA: Brisa Paim

GÊNERO: Romance

ANO: 2009

NOTA: 10

DISPONÍVEL PARA VENDA EM: www.edufal.com.br

O tema suicídio se tornou marcante na literatura com Goethe, que fez dele quase um símbolo do Romantismo quando, em Sofrimentos do Jovem Wether, levou-o à ação máxima daqueles que sofrem por amor. Porém, ali o foco era dado aos sentimentos da personagem, deixando de lado fatores mais intimistas dele. Com dois séculos de distanciamento, o romance a morte de Paula d. da estreante Brisa Paim, prêmio Lego de literatura em 2008, volta ao tema, mas focando no lado mais psicológico da personagem.
Escrito em primeira pessoa, a narrativa é uma viagem à mente de Paula d. instantes antes dela se jogar janela abaixo de sua casa. Com uma linguagem bastante peculiar, Brisa utiliza-se de uma escrita que busca retratar as idas e vindas da mente da personagem, ora seguindo uma lógica coerente – aí as construções das frases parecem se ligarem -, e ora dando quebras na sequência de pensamentos que a personagem vinha desenvolvendo.
O monólogo, caso assim o possamos chamar, tem início quando Paula, que não é Paula, mas um nome que ela pega emprestado de um livro que toma para ler, discute com seu marido a formação educacional que os seus filhos estão recebendo. É a partir dessa reflexão que Paula, tal qual uma personagem de Clarice Lispector, tem um estalo – ou uma explosão, conforme Clarice chamava - para sua condição de ser humano e, principalmente, de mulher.
As primeiras páginas do romance reconstituem essa conversa que repercute em Paula com uma grande epifania que culmina com a já mencionada explosão. A partir daí valores e costumes são postos em xeque e observados criticamente pela personagem. Aos poucos uma angústia de ser toma conta dela e a faz perceber cada vez mais sua condição humana e de mulher, até que ela se isola no quarto para buscar sentir as coisas que o cercam, nesse momento temos o ápice das sensações, Paula está completamente à flor da pele, e o sentimento de angústia a possui de forma cada vez mais crescente, culminando em seu suicídio.
A morte de Paula d. é daqueles romances que sinopse nenhuma consegue abranger devido ao modo como os sentimentos são descritos de forma tão minuciosa que qualquer resumo se torna supérfluo diante do contato com a obra em si. E é essa busca pelos detalhes, pela descrição precisa dos sentimentos, feito por metáforas incomuns que conferem uma magnitude a ela. A maneira como esses sentimentos se formam na personagem segue o ritmo dessa evolução. Às vezes temos passagens que lidas no ritmo sugerido tomam nosso ar, e em outras as ideias vem aos poucos, quebradiças, espaçadas por um silencia sugestivo à reflexão, numa reconstituição perfeita do tempo psicológico ao qual estamos metidos desde as primeiras linhas.
E é justamente o tempo que confere ao romance aquilo que Mario Vargas Llosa chama de poder de persuasão de uma narrativa. Por estarmos presentes na mente de Paula, as frases desconexas se tornam conectadas devido a intenção da autora de reproduzir os devaneios pré-morte da personagem. Portanto, todo o romance se passa em alguns instantes antes dela cometer o suicídio, toda aquela lembrança vem à tona no momento em que Paula se tranca em seu quarto, naquela manhã. Então os fatos precedentes são retomamos e, além dos fatos as ideias e sentimentos de Paula e todo o seu devaneio até a decisão de matar-se.
Mas o que de fato afligiu tanto a Paula a ponto dela cometer o suicídio? O fato dela ter que ser mãe, ter que cuidar deles, o fato dela ter que casar, o fato dela ter que cumprir uma série de posturas exigidas pela sociedade. O interessante nisso tudo é que diferentemente de outras mulheres que ficam feliz a cada etapa realizada, Paula angustia-se cada vez mais, torna-se infeliz por ter que cumprir uma série de obrigações que destinaram a ela. Portanto, se quisermos apontar um responsável por ela ter se matado, ele seria o cotidiano, a rotina de vida a qual todos estamos submetidos e a fazemos infinitamente. Por trás de tudo isso encontra-se a ideia do eterno retorno que Nietzsche desenvolveu. E é por trás de uma filosofia de Nietzsche e de seu niilismo que a personagem se constrói, negando a realidade que lhe imposta e exigida, porém, ao invés de se portar destrutivamente perante a organização, tal qual faz o personagem do post anterior (O Cobrador), Paula d. conserva um niilismo autodestrutivo e finda sua própria existência.

(por Estêvão dos Anjos)

(originalmente em www.sobrefilmeselivros.blogspot.com/)

(imagem retirada do post original)



domingo, 22 de junho de 2008

"João Urso" - Breno Accioly

MERGULHO NO ÍNTIMO DA PSIQUE



João Urso é o primeiro e mais conhecido livro do escritor alagoano Breno Accioly, considerado um dos melhores contistas do Brasil. Publicado em 1944, essa coletânea de dez narrativas, aparentemente, traz na loucura uma unidade temática que se configura como um dos pontos mais atrativos da obra.

É aparentemente porque dizer que o tema de Breno Accioly é a loucura pode soar precipitado ou preconceituoso. Afinal, loucura para quem? Em que ponto de vista, em que concepção pode-se dizer que as mentes perturbadas de personagens como João Urso, Poni ou Coriolano pertencem a loucos? Eles assim o são apenas para o senso-comum. O autor imerge o seu leitor ao mundo particular de seus protagonistas, à realidade incompreendida por aqueles que os taxam de loucos e os excluem da convivência em sociedade. Conduz à participação da agonia instaurada, da luta que não é facilmente evidenciada no corpo, a não ser por alguns poucos estímulos ou confusas reações, pois o corpo não mostra o que realmente explode no âmago.

Seria mais justo dizer que o tema está na inusitada inconsciência, com seus impulsos, desejos, anseios; e é ainda nesse campo desconhecido da natureza humana que eclode a sensação de solidão, a intenção de vingança, as incertezas da morte e o encarceramento psíquico. Todas essas são características negativas que, ao se manifestarem fora da ficção, causariam repulsa e medo às pessoas comuns, mas não a Breno Accioly que, com muita sutileza, investe e experimenta cada um dos infinitos particulares que cria.

A presença da unidade referida é interessante por possibilitar a abordagem de vários aspectos dentro de um mesmo tema, mas vai além desse tema e atinge também a linguagem. As estruturas dos textos tendem a se manter. Em geral, o escritor é dono de contos que podem ser considerados longos, em média dez páginas cada. A terceira pessoa é constante, geralmente não são aqueles tipos perturbados que convidam o leitor a penetrar em suas fragilidades psíquicas ou emocionais, mas sim um narrador externo, uma voz onisciente que mostra o caminho, que fornece as evidências.

Outro dos recursos mais utilizados, e que funciona muito bem nos contos "João Urso", "As Agulhas", "As Três Toucas Brancas" e "Açougue", é o flashback. Praticamente todos os textos apresentam essa semelhante estrutura de construção narrativa, em que a personagem aparece em sua atual situação e parágrafos após passa a recordar alguns fatos para no final voltar ao ponto de início. É durante esse retorno a acontecimentos anteriores que se tem contato com as causas e os motivos que deixaram os protagonistas em seus estados atuais.

Intrigante é o fato de todas as personagens serem homens. Cada qual com suas histórias, porém com sintomas similares, como se aquele ponto vital comum a todo e qualquer ser humano, ao ser tocado, reagisse da mesma maneira, de forma instintiva. O que tanto incomoda o autor a ponto de ele insistir tanto nisso? Também seria precipitado afirmar que o que está escrito condiz, de certa forma, com a vida dele, pois sempre é perigoso relacionar diretamente criador e ficção. Mas como escrever com propriedade sobre aquilo que não se conhece? O contista apresenta uma desenvoltura muito grande ao descrever aqueles tipos, provavelmente há influências de sua profissão de médico, de sua infância no município de Santana do Ipanema - já que vários contos se passam nessa cidade -, ou até mesmo de algo que o tocava e que também o perturbava. Afinal, ele poderia ser uma de suas personagens, ou quem sabe todas. Muitas são as possibilidades dentro da Literatura, porém nada de exagero, por favor, nada de certezas ou dogmas. Falecido em 1966, Breno Accioly não está presente para confirmar nada.

Um ponto negativo da unidade temática e estrutural é justamente o risco de se tornar excessivamente repetitivo. Do meio para o fim do livro se tem a impressão de que sempre se fala da mesma coisa e do mesmo jeito, apenas mudando cenários e nomes - cada um mais incomum do que o outro, como Salustiano, Coriolano ou Sugismundo. É até comum escritores e poetas elegerem determinados assuntos como seus prediletos, mas Breno Accioly por diversas vezes anda pela fina fronteira da redundância, o que pode ser nocivo à sua obra. Contudo, no todo, o autor se sai muito bem e deixa um gosto de denso estudo em forma de arte literária sobre a psique humana, com o diferencial de ser pelo ponto de vista excluído.

João Urso é sobre seres que se perdem dentro de si mesmos, que não resistem à pressão do mundo. É um bloco de impacto, tanto em sua temática, quanto em sua linguagem peculiar. Afinal, nenhum escritor é obrigado a escrever de diferentes formas apenas para não repetir sua própria fórmula que, vista de um ângulo mais ameno, pode ser lido como o seu estilo. E que estilo!

(por Renato Medeiros)
(originalmente em
www.oslivrosquejali.blogger.com.br/)
(imagens retiradas do post original)